Não sabia se era o último dos mamutes. Mas na guerra, sempre havia estado muito só. Antes que o primeiro inimigo tocasse o solo, o último deles recebia suas presas afiadas. Assim era. Enfrentava as situações complexas com precisão cirúrgica. Transpunha obstáculos pesados com os músculos, cultivados com as cicatrizes que aparentava. Uns poucos amigos lutavam ao seu lado, davam cobertura. Lutava porque sabia que morreria e saber isso disso às vezes era como estar já sem vida. E, sem vida, nada havia a perder.
Já que não sabia onde estava, não sabia mais de onde tinha vindo. Dispensava essas informações enquanto parecesse que havia lhe restado apenas um caminho em frente. E não havia vida para o Mamute. Pensava “Sou o último da espécie. Conheci coisas más e senti coisas más. Um bicho ruim eu sou”. Ele se achava o último porque ninguém o conhecia realmente, ninguém sabia quem ele era. Não conseguia entender porque às vezes chorava.
Mas sentia que algo havia mudado, que o agora era diferente. Via o gelo derretendo, a água correndo das montanhas, formando riachos e pequenos lagos. Espantado, ficava a fitar a superfície da água. Sem medo de parecer um Narciso descabido, e perder-se na admiração. Nunca houve esse perigo. Não havia nada a provar. As borboletas estavam ali. E resolveu que, por hora, conversaria com o riacho. Para perguntar o porque de chorar às vezes, se estava tão feliz. O riacho lhe disse que era porque o que o Mamute guardava dentro de si era algo de grande tamanho e valor.
Realizou que vivia como a água que corria, que não escolhia onde ia chegar, ou ainda não sabia como. Foi então que parou de correr. Não que pretendesse ficar assim pra sempre. Foi só pra ver como era, o que sentiria. E foi bom saber que tais segundos simples foram muito mais importantes do que duradouras complexidades. E percebeu que, por vezes, o grande momento não é o golpe bem desferido, mas estar melhor lugar para se apoiar e suportar violência de quem não entende a beleza. Talvez ele realmente não fosse um mamute afinal. Talvez fosse outra coisa, embora não soubesse ainda o que. Mas sabia que ia mudar, que estava mudando e gostava disso. Uma parte de si se jogaria do abismo. A outra enfrentaria a acrofobia característica dos mamutes e ficaria sã.
Seus amigos não entendiam porque ele queria mudar. Afinal, dava-se tão bem nas batalhas do dia a dia. Não compreendiam a mudança porque sempre viam o seu sorriso, mesmo durante os tempos glaciais, mesmo na guerra contra o frio. Mas não viam de verdade, seu verdadeiro rosto. O julgavam por sua fama, por seus sorrisos construídos, dos quais havia se despido muito há pouco, e não pelos sorrisos sinceros. Pela poeira que, sem querer, carregava no meio de todos aqueles pelos. Sentia que tinha sido um contrabandista de si mesmo, no meio de tanta pose. E quando recapitulava, as coisas, de fato, pareciam ficções. Um filme com cortes. Mas não seria mais assim.
Foi quando decidiu que o calor valia a pena. Que o degelo era o mais certo. Que era preciso se despir das ilusões, que ali não eram necessárias, e cortar todo o pêlo que sobrava. Mas achou que, quando se livrasse de todo aquele pêlo que cercava seu corpo, encontraria um boi. Achou isso por perceber que o olhar pousaria com mais calma sobre si mesmo. Sentiu uma ponta de medo. Porque, como um bovino a se contemplar refletido na água, ele se esqueceria rapidamente das questões anteriores. Como quem esquece dos dias que passaram e nem pensa nos dias que podem vir.
Outra ponta de medo. Dessa vez diferente. Daquelas que, antes de virarem pânico, viram coragem. E decidiu que ia livrar-se do espesso manto que o cobria, mesmo correndo o risco de sentir frio. E que lhe desculpassem os ofendidos. Havia mandado todo o ressentimento ir ecoar em outro desfiladeiro, não ia mais incomodar. Daí por vezes pensava no quanto estava desfamiliarizado consigo mesmo. O quanto seus gestos poderiam parecer estabanados e, as palavras, tolas ou mal interpretadas. Um pouco aflito ao pensar nisso. Sabia que uns iriam vê-lo e não gostariam, e outros nem se dariam ao trabalho. Outros ainda o veriam e esqueceriam seus próprios umbigos por um instante, felizes.
E sentiu que gostaria muito que cada um encontrasse em alguém aquilo que ele sabia que havia encontrado. Teve vontade de segurar a cada um deles pelos ombros, olhar em seus olhos e afirmar o quanto isso é verdadeiro. E, depois que fizesse isso, poderiam pensar o que quisessem. Ele já não se imortava mais. Percebeu enfim que, acima dos gestos, o sentimento era o que valia tudo. Era o instinto certo que o fazia tocar naquelas regiões indefiníveis da alma. Aprendeu que, na constância, poderia ser constante. E que, na rotina, o óbvio passava a ser poesia. Quanto o manto caiu, viu que não havia se tornado um boi. Era agora um homem.
3 comentários:
Um homem, um nvo homem. As mudanças pelas quais as águas do riacho da vida nos conduz refletem um ritual, tão íntimo q outro alguém jamais compreenderia. Mas, perceberia, pq por trás do manto pode-se sentir o calor q está além dos gestos... por trás do manto está kem somos realmente, kem somos de verdade...
Lindo conto, palavras q revelam sentimento universal...,
Leidiana
P.S. Tenho lido seu blog, heheh, td de bom!!!!!
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